Estudo de caso — UX Research

Adoção de hábitos alimentares saudáveis na rotina de famílias em vulnerabilidade social

Uma estratégia para identificar e melhorar hábitos alimentares de famílias com crianças de 0 a 2 anos.

Pedro Augusto dos Santos
11 min readJan 26, 2021
Logo criado pela Murano Design

O estilo de vida de muitas crianças mudou completamente nos últimos anos e segundo os dados do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), essa situação foi agravada com a pandemia, a obesidade infantil tende a aumentar no Brasil

Hoje, uma em cada 3 crianças brasileiras sofre com excesso de peso, e algumas das causas envolvem o contexto social e os hábitos alimentares da família.

O guia alimentar para crianças menores de 2 anos, publicado em 2019 pelo Ministério da Saúde, alerta sobre os riscos à saúde devido a uma alimentação inadequada:

“desde os primeiros anos as crianças estão consumindo pouca variedade de alimentos in natura e minimamente processados e estão sendo expostas muito precocemente a alimentos que podem fazer mal à saúde.”

E como fazer com que famílias melhorem seus hábitos alimentares e favoreçam uma vida mais saudável para os filhos?

O CREN — Centro de Recuperação e Educação Nutricional, é uma ONG que contribui no enfrentamento da má nutrição no Brasil. E há mais de 25 anos realiza um serviço completo para promover uma boa nutrição para crianças e adolescentes em vulnerabilidade social.

Neste artigo vou contar como foi possível criar estratégias para contribuir na melhora dos hábitos alimentares de famílias em vulnerabilidade social…

Entendendo o cenário

O Rafael Frota, Designer e Editor do UX Collective 🇧🇷, escreveu a seguinte frase em seu artigo:

entender o que vai ser feito é tão importante quanto fazer”

Ela exemplifica muito bem a nossa estratégia, que foi: entender o que leva as famílias tomarem decisões que impactam negativamente a alimentação dos filhos.

Uma pesquisa feita pela Universidade São Francisco (USF), de Campinas, com 324 crianças, revelou diversas inadequações alimentares que acontecem na rotina das crianças, desencadeando fatores que levam a uma má nutrição e obesidade.

Este estudo ainda revelou que um dos aspectos que interferem numa boa alimentação está na dificuldade de diálogo entre profissionais da saúde e as famílias.

Mapeando esses problemas, presumimos que existe uma solução que auxilie no contexto alimentar infantil e a hipótese para isso, era:

Criar um material para ser utilizado durante as consultas, que facilite a comunicação entre os profissinais e famílias e que promova a saúde, através da adoção de hábitos alimentares saudáveis.

Como foi feito esse processo

Para desenvolver este material, foi preciso levantar e investigar algumas dúvidas:

  • quem são os principais atores envolvidos na elaboração do plano alimentar de crianças menores de 2 anos?
  • quais são os obstáculos na comunicação entre profissionais da sáude e famílias quando o assunto é alimentação?

Começamos levantando hipóteses de quem são os atores envolvidos nesse processo, para isso consultamos nutricionistas, assistentes sociais e psicólogos do CREN, com ampla experiência no atendimento de crianças com algum desvio nutricional dentro da faixa etária de 0 a 2 anos, e profissionais com especialização em áreas administrativas, para mesclar o grupo e não enviesar o resultado final.

Estes participantes presumiram que os atores envolvidos, são:

Pais, mães , avós, irmãos, tios e tias, vizinhas, além de médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos e agentes de saúde, fazem parte do contexto da alimentação de uma criança.

Com este mesmo grupo pedimos para que elaborassem suposições sobre os principais obstáculos na comunicação entre profissionais da saúde e famílias quando o assunto é alimentação.

Eles deveriam elaborar frases que representassem as dores das personas envolvidas nesse processo.

Profissionais

“Tenho muitas consultas e pouco tempo no consultório com o paciente”

“As famílias muitas vezes não seguem as orientações que passamos”

“Como devo orientar sobre alimentação complementar nas consultas?

Famílias

“Eu ofereço alimentos para o meu filho, parecido com o que minha mãe fazia pra mim”

“o que eu devo perguntar na consulta com o médico?”

“tenho medo de dar certos alimentos, não sei pode todas verduras e frutas”

Esta etapa foi conduzida tendo como referência a Matriz CSD e neste link há mais detalhes sobre o processo.

Storytelling

Transformei esses insumos em storytelling para identificar o real problema e encontrar os meios de resolvê-lo.

Criei uma história, onde dois personagens (médico e a mãe da criança) se encontram numa consulta de rotina para fazer o acompanhamento do filho.

Usei como referência o framework da pixar e outros conceitos de storytelling que vi neste artigo e adaptei a história com detalhes mais customizados para idealizar uma solução.

Juliana, tem 24 anos, ela teve seu primeiro filho recentemente, chamado Joaquim, que acabou de completar 1 ano de vida, hoje eles passaram por uma consulta de rotina com o médico da UBS próximo a sua casa. Ela e o Joaquim foram atendidos pelo Dr Luis, que já está há 8 anos nesta unidade de saúde.

A Juliana está preocupada, pois o filho não ganhou peso no último mês, e disse que está dando os alimentos certos para filho, nesta consulta, o Dr. Luis usou um material que acabara de receber, e ele foi treinado por uma equipe especializada para utilizar na consulta e ajudar na alimentação da família, a Luciana ficou surpresa, pois neste material haviam diversos alimentos que ela não sabia que poderia oferecer.

O Dr. Luis entregou o material para a Juliana levar para casa, que levou para toda família, assim puderam usá-lo sempre que necessário para saber os alimentos adequados, favorecendo a rotina alimentar da criança e construindo novos hábitos alimentares.

Validação

Com o storytelling foi possível sistematizar nossas hipóteses e soluções, era hora de validar se estávamos no caminho certo.

Optamos por usar questionários com as mães ou responsáveis por levar as crianças às consultas, e sua aplicação foi através de uma conversa conduzida possibilitando investigar informações mais detalhadas .

Estes questionários foram aplicados em 6 UBS’s — Unidades Básicas de Saúde e tiveram respostas de 60 participantes, a média de idade das crianças era de 7 meses.

Quem são as principais pessoas que os apoiam e participam, ensinando algo sobre a alimentação dos filhos?

Questionário com 60 participantes, aplicado em 6 UBS’s de SP.

65% alguém da minha família;

16% aprendi pela internet

12% repeti o que fazia com meus filhos mais velhos

7% um profissional da UBS

Esta era uma hipótese que presumia quem eram os atores envolvidos no contexto alimentar da criança.

Estas respostas demonstraram que o material precisaria chegar não só até as mães, pais ou outros cuidadores da criança, mas deveria envolver toda sua rede de apoio, principalmente as figuras da família.

Você sabe as opções de alimentos que deve oferecer para a criança?

Questionário com 60 participantes, aplicado em 6 UBS’s de SP.

59% dos respondentes dizem saber quais alimentos devem dar aos filhos.

Mesmo com as pesquisas demonstrando que há inadequações alimentares, as famílias dizem saber quais alimentos devem oferecer.

Isso aponta que o produto a ser criado deveria ser claro sobre formas adequadas de alimentar as crianças além de estimular as famílias a conhecer mais sobre alimentação saudável.

Quais são as principais razões que o levou a introduzir alimentos para o seu filho?

Questionário com 60 participantes, aplicado em 6 UBS’s de SP.

20% acha que só o leite materno não é suficiente

24% por orientação de um profissional da UBS.

As respostas das famílias sobre a crença de que o leite materno não é suficiente, despertou na equipe de nutricionistas do CREN a necessidade de que este produto abordasse sobre a importância da amamentação das crianças, pelo menos até os dois anos de idade.

Além dos questionários aplicados com as famílias, conduzimos entrevistas com 3 profissionais da saúde da UBS Santa Inês, em São Paulo, para entender as dificuldades que encontram durante as consultas.

A seguir alguns depoimentos:

“Com tempo limitado durante a consulta, muitas vezes não consigo orientar as mães com tudo o que precisa”

Médico pediatra — UBS Santa Inês

“Existem publicações e estudos sobre alimentação complementar, mas nada que seja prático para utilizar na consulta. Treinamentos com especialistas no tema poderiam ajudar”

Enfermeira — UBS Sacomã

As descobertas a partir das entrevistas trouxeram hipóteses de que o produto deveria considerar o pouco tempo de consulta e ser prático no uso. Os profissionais ainda relatam que treinamentos para aprimorar o abordagem no tema pode ajudar.

Consolidação dos dados

Reunido todos os conteúdos da pesquisa, consolidamos os dados para direcionar os principais aspectos que esse produto deveria ter:

Percebemos na pesquisa que há um desentendimento e falta de conhecimento sobre a introdução alimentar, tanto por parte dos médicos, como das famílias. Portanto era necessário uma estratégia de comunicação de fácil aplicação e objetiva.

Nas entrevistas com os profissionais da saúde foi relatado pouco tempo nas consultas e a prioridade das famílias muitas vezes não é exclusivamente a alimentação.

Os profissionais da saúde relatam interesse em formações sobre alimentação complementar para facilitar a abordagem durante a consulta.

Além disso, a pesquisa revelou a necessidade de fomentar o acesso a alimentos saudáveis e que é preciso fortalecer a rede de apoio, trazer a importância dos demais familiares e valorizar a fase da amamentação da criança.

Desenvolvimento dos produtos

Nesta fase demos início a uma série de reuniões junto à equipe de design contratada para desenhar a interface da ferramenta.

Com isso, surgiram insights para suprir as dores encontradas durante as pesquisas e foi decidido que a ferramenta a ser desenvolvida deveria:

  • Conscientizar sobre o tema —baseado nas pesquisas, os especialistas em nutrição do CREN elaboraram os principais conteúdos que deveriam conter no material sobre saúde e nutrição
  • Ser divertido —Os designers de interface criaram personagens em animação que representasse o ambiente alimentar da família
  • Ser auto explicativo — organizamos os textos do produto com conteúdos que os os usuários supostamente não teriam dificuldade de usar na consulta e que seria fácil de entender
  • Adaptável a contextos diversos — A idéia era criar uma história que representasse a família, que pudesse ser acessada em diversos locais, como: consultas médicas, grupos de amamentação, na própria casa da família, com isso presumimos que uma animação em vídeo daria essa possibilidade.
  • De fácil aplicação — Além do vídeo, elaboramos mais um produto com conteúdos explicativos, que virou um ímã de geladeira, contendo orientações sobre a alimentação da criança, de forma simples e que pudesse estar visível para as pessoas.

Protótipo do imã de geladeira

Interface produzida pela Murano Design durante a etapa de prototipação

Vídeo

Animação criada pela Murano Design

Testes de usabilidade

O imã de geladeira foi testado com 22 profissionais da saúde e alcançou mais de 150 famílias, eles foram entregues durante as consultas médicas com os profissionais da saúde treinados para usar o ímã.

Realizamos visitas a 33 famílias que receberam os materiais (vídeo e ímã)

Questionário aplicado em 1 unidade de saúde com 33 famíllias

Das 33 visitas realizadas, 45% assistiram ao vídeo.

Já o ímã, 93% das famílias estavam com ele na geladeira.

Os imãs de geladeira tiveram alta adesão pelas famílias, já o vídeo teve acesso apenas em grupos de amamentação realizados pelas unidades de saúde.

Questionário aplicado em 1 unidade de saúde com 33 famílias

78% das famílias, informaram ter acrescentado mais legumes e verduras na alimentação dos filhos após o uso do ímã.

“categorizar as descobertas facilita a análise durante a pesquisa”

Esta frase, retirada do artigo da Sheylla Lima,UX Researcher na Pic Pay, demonstra que categorizar a interação do usuário com o produto, facilita identificar se as hipóteses foram validadas (pontos positivos) e também identificar as dores do usuário (no uso do produto ou serviço em geral).

A imagem abaixo mostra uma parte da jornada de alimentação que mapeamos durante a pesquisa, além das emoções identificadas em cada fase. Fonte da imagem: própria

Ajustes

Com os testes de usabilidade consolidados, o produto passou por ajustes e obteve uma nova interface:

  • Menos textos
  • Destaque na importância da alimentação em família
  • Aumento do número de opções de alimentos que podem ser oferecidos às crianças
  • Ampliação do tamanho da roda de alimentos
Protótipo ajustado

Após os ajustes no ímã, partimos para a produção de larga escala, chegando a mais de 20 unidades de saúde do Brasil, a equipe do CREN treinou mais de 300 profissionais da saúde para usar o material e impactou mais de 700 famílias.

Mãe que recebeu o imã de geladeira após a consulta em Porto Alegre-RS

“Olho a roda e ofereço frutas e verduras. E agora dou um alimento de cada grupo”

Fala de uma das mães que recebeu o ímã — Porto Alegre -RS

Profissionais da saúde em SP, recebendo os protótipos com ajustes feitos.

“Com essa metodologia será mais fácil para as famílias escolhidas para esse projeto assimilar os conhecimentos adquiridos. Parabéns pela iniciativa. ”

Gerente da unidade de saúde Santa Inês em São Paulo

Resultados desta etapa podem ser encontrados neste link.

Conclusão

Mesmo após o encerramento do projeto, tivemos relatos de unidades de saúde que desejam receber mais ímãs de geladeira para orientar as famílias.

“Mudei de unidade e gostaria de saber se vocês têm mais imãs para disponibilizar, o material é fantástico”

Gerente de unidade de saúde de SP

Relatos como este mostram que os profissionais se interessam pelo produto e faz sentido usar com as famílias na facilitação de temas da alimentação infantil.

Ao mesmo tempo, é preciso investigar resultados a longo prazo e entender as mudanças que podem acontecer no contexto social, nos hábitos alimentares e como isso influencia a alimentação infantil.

Isso traz como aprendizado que os processos de design estão conectados com as experiências das pessoas e devem acompanhar as mudanças, validar hipóteses e gerar soluções.

Obrigado por ler até aqui!

Que este texto possa contribuir com a comunidade UX!

Agradecimentos a toda equipe do CREN que se envolveu neste projeto.

Agradecimentos especiais a Sheylla Lima, Rafael Frota e Felipe Domeneguetti, por terem me apoiado durante a elaboração do texto, foram referências para mim nesse processo.

Conheçam e colaborem com o CREN.ORG.BR!

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